26/05/2007

Muitos assistem calados os momentos de medo que sentem
(talvez eu seja um deles também).
Hesitar é um refúgio daqueles que mentem sobre sua força.
Em passos largos, aproxima-se o irreversível,
tomando para si nossas escolhas, sempre exclusivas.

Não sou eu que o digo; são as leis da física.

Indecisão é a mãe de todo passado impossível.
A liberdade para cometer novos erros
é o combustível de nosso pequenos acertos.
Negar suas possibilidades é fugir do problema
e é bom lembrar-se bem disso.
Ter saudade do que nunca foi não faz nenhum sentido,
mas faz boa poesia.
Seguir adiante e tatuar na própria pele certezas
humanas e mutáveis é uma boa prova
de que ainda sentimos amor e medo
nesse estar chamado vida.

25/05/2007

Em uma pia branca [...]

Em uma pia branca, gotas negras criam desenhos como sardas. Um forte cheiro de água sanitária emerge daquela fotografia. Tomando fôlego outra vez, mergulho naquela imagem. Sinto na ponta dos dedos o viscoso das gotas e o frio sepulcral da cerâmica. O mundo preto e branco da fotografia é feito de tons de cinza, e assim é a vida. Em um mundo de vida e morte, o estar vivo nada mais é do que morrer aos poucos, envelhecer a luz em ferrugem escura, sangrando diferentes matizes. A grande esperança é de que, no mínimo, a foto fique boa e bem guardada na memória de alguém. Quem sabe viver para ter filhos um dia e desenhar essa lembrança na carne da terra não seja nada mais do que essa busca. Mas fotos de lápide compradas com sacrifício, com seu risonho ar de já avisei, não são bonitas. Preciso de ar, estou fraco neste cemitério que resgatei da memória de alguém!

Tiro minha cabeça de dentro da pia suja de gotas negras e abro a torneira. O ar está morto como a cerâmica, meu corpo ofegante. É o medo de não sair, de descobrir algum sentido. Enquanto a lógica formal ou dialética ou qualquer outra forma de lógica já ou a ser catalogada não me enquadrar, estou seguro. Estou a salvo de me tornar nada pois sou inexplicável. Minhas mãos estão mergulhadas na água da pia. Ninguém pode me entender, e ninguém deveria querer, ou quer. Como os grãos ásperos de uma lâmina velha, não sigo o fio. Lâminas cegas são amoladas, pessoas também. Sou jovem e ainda afiado, não tanto quanto deveria ser, mas sei onde ferir. A navalha sangrenta é rápida em seu trabalho, mas demora a ser limpa, e isso incomoda. O cheiro de água sanitária torna-se cada vez mais denso. Sinto-me exausto.

Caio em câmera lenta, mãos e cabeça molhadas, azulejo frio. Vinte centímetros: começo a girar sobre meu eixo. Meio metro: sinto a escuridão e o choque térmico se aproximarem. Toco o chão num baque seco. Minha cabeça dói e a dor, como uma onda de choque, espalha-se pelo meu corpo. De repente, percebo que não estou só nessa desolação. Olho no fundo dos seus olhos impacientes e digo a você, com uma imbecil voz de desespero, que não vou demorar muito. Você não fala nada. Sinto inveja: quem dera fosse eu tão frio assim! Tudo seria tão mais fácil. Odeio supor e imaginar como as coisas teriam sido, mas parece até inevitável fazê-lo. Por dois segundos tudo passa rápido demais. Tudo aquilo que teria sido mais fácil. Minha mente volta ao banheiro.

Seu toque é áspero como seu nome, em contraste com a lisura branca do chão do banheiro. Odeio você por não me deixar só. Sua força é constante e rápida, sou arrastado pelos azulejos. Ainda sinto o cheiro de água sanitária, a pia suja foge de mim como eu tentava fugir de você, mas agora não fujo mais. Estou ainda mais fraco do que no cemitério. Tudo se esvai ao seu toque.

20/05/2007

3.30 T. Central

Ela usava fones de ouvido
em todo pequeno percurso
e se perdia numa distância inatingível.
Mergulhava no horizonte,
em um silêncio quase meditativo,
com o olhar no próximo ponto
e cantarolando sem fazer ruído.

Eu, sentado em outro banco
ou de pé em truculento equilíbrio,
meio que ouvia suas músicas feito espião,
mas sem mirabolantes objetivos,
e tentava descobrir alguma coisa
naquelas melodias que ouvia baixinho:
qualquer coisa pouca que fosse,
uma dica, uma pista, um caminho,
que servisse para me dar uma mão
e depois eu que me virasse sozinho.

Ontem, ela se sentou ao meu lado:
um olhar e um quase-sorriso.
Era um dia como sempre normal,
mas, de repente, tirou os fones do ouvido
(deve ter acabado a pilha, acontece)
e o silêncio dela perdeu o sentido.
Numa freiada ou curva qualquer,
uma conversa surgiu de fininho
e, quando ela desceu no seu ponto,
um nome, dois olhares e um sorriso.

Às vezes, uma coisa pequena que seja,
vai saber, pode ser um início
de qualquer outra coisa:
hoje, pelo jeito, ela não trouxe seus fones de ouvido.

18/05/2007

Despedida de sonho

- Quer ajuda com essa caixa?
- Não precisa, ela tá leve. Pega a fita durex ali perto da porta?
- Onde? Ah! Tá, pera um pouco.

Ela continuava empacotando porta-retratos e cadernos de antigas contas conjuntas. Não mudava nada o fato dele estar ali ao lado dela, como sempre esteve. Ela não via o olhar de garoto assustado dele pedindo uma milionésima chance e, mesmo que visse, talvez isso não importasse também.

- Quanto tempo de viagem dá até lá?
- Não muito. Acho que umas três, quatro horas. Por quê?
- Não, nada; perguntei por perguntar mesmo...
- Pronto! Acabei essa daqui, agora só faltam mais três.

Ele já não sentia os dedos de tanto apertar as mãos de nervoso e olhava para as caixas com a certeza de que estava perdido. Ela caminhou diligente em direção ao amontoado de pequenas lembranças do outro lado da sala, com o espírito leve de quem organiza as coisas. Sem perceber, ele acompanhou com dois passos tímidos o deslocamento dela e trombou desajeitado em duas caixas.

- Puta merda! Desculpa, eu nem percebi as caixas aqui. Eu...
- Fica tranqüilo, não tem problema. Você acha que quebrou alguma coisa?
- Não, acho que não. Foi só uma batidinha de leve.

Engoliu em seco enquanto buscava o que dizer a ela, que já prestava atenção no montinho de bugigangas mais próximo. Ela não o condenava; não fazia o menor sentido tentar culpa-lo por erros inexistentes ou naturais, e ele também sabia disso. Não sentia raiva dela; na verdade, quase a entendia. Talvez em outro momento ele tivesse feito isso.

- Ai! Esqueci uma foto na geladeira! Já volto!

Ela passou por ele com passos delicados de bailarina, mais bonita do que nunca. Ele sentiu um aperto daqueles que anunciam o tanto que iremos lembrar de um momento para o resto de nossas vidas. No fundo, ela também sentia, mas isso era normal.

- Helena!

Ela virou o rosto ao ser chamada em um ritmo lento, quase uma câmera lenta de propaganda de xampu. Pronto: estava feita uma fotografia que ele iria guardar dentro de si, embrulhada em uma caixa de papelão barata, presa carinhosamente com fita durex. Amanhã ele iria, como ela, abrir suas caixas também, e isso foi o suficiente para ele.

Os dois se olharam por alguns segundos. Ninguém disse nada e também não era preciso. O que pudesse complicar eles deixaram para depois: não devia ser nenhum fim de mundo. Naquela sala, naquele dia, para acabar essa história, bastou um sincero e silencioso sorriso dos dois.

17/05/2007

Interrogatório

Onde eu estava, você diz?

Reparando lá, parado em Algum Lugar,
Que os gatos coçam o queixo
Chutando a própria cabeça.
Os gatos nunca dizem chega,
Nunca estão satisfeitos,
Poetas de um verso só a reclamar.
Gato nenhum dá realmente azar;
Isso é coisa de quem os acha feios!
Preferem cães cujos rabos abanam a cabeça
Imitando, com pedigrees, linhagens de nobreza?
Os dois são animais humanos com seus defeitos
E viviam em guerra lá, em Algum Lugar...

Do quê eu estou falando?

Você não entende, não é?
Tava só lembrando de um sonho
Sobre algo que por muito tempo foi
E ainda é.

14/05/2007

Kikí

Vestido com um casaco vermelho de corte agressivo e sensual, ele entrou em seu quarto. Sentado na cama, tirou seus grandes brincos de argola, com alguma calma, mas apenas a necessária. Virado em sua cama, ele começou a falar sozinho, um pouco alto. Assim que saía de sua boca, cada palavra, uma a uma, perdia qualquer significado. Suas mãos tremiam, algum suor começou a escorrer de seu rosto e sentiu falta de ar. Percebeu, iluminado pela luz fraca do neon do hotel vizinho, que seu relógio estava quebrado. Quase foi engraçada para ele a idéia de que fossem para sempre quatro horas, mas não conseguiu rir, pois ainda falava. Calou-se e lembrou de tirar os apertados sapatos de salto fino. Deitado do jeito que estava, não conseguia desatar o tosco nó que o prendia aos sapatos. Sentiu medo de estar perdendo o controle. Tudo dependia dele ficar livre daquilo, mas claro que isso é um exagero. Ele conseguiu soltar o fio, tossiu duas vezes e depois dormiu. Só foi acordar com o Sol batendo forte nos seus pés. Ainda eram quatro horas quando acordou e sentiu que, mesmo que ainda fossem quatro horas, tanto fazia.

13/05/2007

Historinha

Ela fingia que não sabia de nada
Que ignorava tudo que Silas lhe dizia
Simplesmente fazia que não escutava
Enquanto, por dentro, era outra coisa que sentia
A atração inevitável do paradoxo
Um pouco de não sei quê sentido de alegria
Que a gente via nos seus olhos
Sempre que Rita a Silas dizia ‘não’
Silas, aos poucos, afrouxava os nós
Que Rita, mais ou menos, tinha no coração
E ele, com paciência, ia seguindo essa banda
Mas enquanto em Rita crescia o ‘sim’, nele crescia o ‘não’
E o momento e o tempo são quem manda
Nessas coisas que não tem muito jeito
(Oferta não tem nada a ver com demanda)
E o tal dia, demorou um pouco, finalmente veio:
Silas arrumou suas coisas e foi-se embora
Ficou Rita sozinha com um ‘sim’ negado no peito
Tentando entender quando que passou seu ponto, sua hora,
E pensando na ironia dessa sua mágoa, que é o que sobra

Desenho

Meu chapéu azul chocava a todos naquele tribunal. A juíza olhava, o guarda olhava, o júri olhava e até mesmo o ventilador de teto cambaleante prestava atenção no meu chapéu. Parece até que ninguém nunca viu um homem de chapéu azul sentado calmamente, desenhando. Meu advogado, defensor público, achava engraçada minha aparência, tenho certeza disso hoje. Isso até que devia ser bom: afinal, assim ele talvez prestasse mais atenção à sua tarefa de tentar me salvar. Não que importasse alguma coisa para mim ou para ele, mas vai saber: a justiça muitas vezes comete atos falhos e perdoa por erro, não por piedosa majestade.

Doze cães de aluguel, raivosos e babando em sua condição de cidadãos comuns convocados, me avaliavam por coisas que eles nunca viram, que não os afetaram e, o que é pior, nem sequer os interessavam. Quero que eles se fodam, hoje mais do que naquele dia. Lá eles no mínimo serviam pra alguma coisa que me entretinha: eram bons modelos com seus olhares estupefatos. Parecia até que eles não se identificavam comigo, ledo engano deles. A minha cara sempre foi um nítido espelho, emoldurado no dia do juízo por um belo chapéu-coco azul.

Já havia dado meus depoimentos e aguardava a juíza ler a sentença, que ainda passava de mão em mão pelos jurados caninos. Eles queriam ter feito cada uma das coisas que fiz, tinha certeza disso. Não conheço um cachorro que seja que não goste de comer carne mal-passada, com algum sangue ainda preso nas veias do corte, ou que não gostasse de esmagar uma presa entre seus dentes. Olhava para meu advogado apreensivo observando, ao som do ventilador de teto dançante, os movimentos em câmera lenta do júri. Ele era tão novinho, devia ter a mesma idade que eu naqueles dias. Bem, ainda deve ter a mesma idade que eu, na verdade.

- Tá chegando a hora do almoço, Luizinho – o carcereiro novato tenta disfarçar seu nervosismo puxando alguma conversa comigo.
- Eu sei olhar relógio, não me enche – respondo, desconfortável: odeio ser interrompido enquanto desenho uma lembrança qualquer.

Não entendi nada da sentença que ela leu, mas sabia muito bem o quê aquilo estava marcando na minha história. Meu advogado não gostou do que ouviu, quis reclamar, mas fiz um sinal pra ele parar quieto no lugar. Aquele momento era meu, um falso gran finale para uma platéia de invejosos. Todos ali conheciam bem o prazer da boca cheia, da fome saciada, e extraíam sua satisfação de mim, da culpa que inventavam para mim. Sou um estrangeiro na terra deles, mesmo que esteja ilhado aqui fazendo turismo por entre dentes de ferro.

Naquele momento lá atrás, fiquei de pé com meu chapéu azul encarando a juíza. Foi generosidade dela me dar aqueles segundos de suspensão antes que começasse meu novo fim. Deixei o desenho que fazia em cima da mesa, um pouco para o lado do advogado, para que ele o levasse de lembrança: gosto de dar presentes às pessoas. Olhei para os outros, que me olhavam, também esperando algo. Pensei em rir, mas não fazia sentido, em ser ainda mais sincero, mas não adiantava, em ficar quieto, mas era um desperdício de tensão, e em mais mil opções. Acabaram meus segundos e fui levado do tribunal. Não resisti à beleza absurda do momento e, ao passar pelo canil, larguei, para grande susto dos meus colegas animais do júri, meu chapéu-coco azul dentro de seu cercado. Aos poucos, à distância, ouvia uivos de vencedores tapados, embriagados de seu poder, mordendo o próprio rabo.

11/05/2007

O cara

Lucas sabia das coisas, isso era um fato. E era assim mesmo, querendo ou não, ele sabia das coisas, das manhas, pode botar fé. Meio que dominava todo tipo de jogo que pode existir entre pessoas. Conquista, amizade, conflito, discurso, boato, indiretas, o que fosse. Claro que existem muitos como Lucas no mundo, todos conhecem no mínimo um, mas o que chamava a atenção para o seu caso é que Lucas era, apesar de seu incrível talento, um mala, chato de verdade.

Nem era uma questão de arrogância ou coisa assim. Ele sabia disso e até se esforçava em ser legal e tal, mas não saía cem por cento. Quando entrava em um ambiente as pessoas ficavam meio incomodadas, pois, mesmo sendo um chato, ele dominava. Não que virasse o centro das atenções, monopolizasse ou algo assim. Simplesmente todos sentiam na hora que ele sabia das coisas, mesmo que nunca tivesse falado com ninguém do lugar. Ninguém conseguia também explicar porquê o achavam chato, mas era uma unanimidade. Na verdade, ninguém parava muito para pensar no porquê, pois todos só pensavam em como um cara mala como aquele conseguia saber tanto das coisas.

Ser chato complicava as coisas para o Lucas, mas ele sempre sabia como dar um jeito. Um pouco de atenção a mais aqui, uma pergunta inteligente ali, uma piada irresistível aqui, um olhar que diz tudo ali. O cara era, com o perdão da palavra, foda. E isso fazia dele mais chato ainda! É só parar para pensar um pouco: ele sempre acertava, mandava bem mesmo, sem ser arrogante ou forçar a barra, discreto e indiscreto nas horas certas, e, mesmo assim, continuava sendo mala. Parece provocação, fala a verdade. Por conta disso, Lucas era aquele cara que todos torcem para que não apareça na festa, mas que faz muita falta se não vai, entende?

Lucas não era egoísta, não ficava montando banca para seu ego. Ele mandava bem para o coletivo, que nem jogador de futebol bom faz. Era só chegar que agitava tudo e a noite – ou o dia, tanto fazia – mudava na hora. As coisas começavam a dar certo, a conversa funcionava, os olhares tinham resposta, a cerveja gelava, o fiapo de carne saía do meio dos dentes, o trabalho ficava leve, era lindo. Quase exagerei agora, mas era nesse nível, parecia mágica mesmo. E tudo isso meio que emanando daquele carinha mala ali no canto. Ele realmente merecia o respeito velado que tinha de todos, querendo ou não.

O problema de Lucas não era seu tom de voz ou sua cara ou seu jeito ou qualquer outra coisa em particular. Tudo tinha um jeito com ele, sabe? Aliás, tudo tem um jeito, no final, mesmo que seja um jeito meio ruim. Até o fato do cara ser chato tinha um jeito. Incrível e incrivelmente irritante isso, não? Pois é. Bem, também tem coisas que não tem muito jeito, a não ser o tempo passar e a gente se acostumar. Digo isso porque teve um dia em que Lucas simplesmente desapareceu. Do nada, ninguém mais o viu ou teve qualquer tipo de notícia. Aquilo foi realmente muito estranho, não deu para entender. Ficou todo mundo aqui, normal, sem muitos dramas, mas sem ele, entende?

E tudo ficou até mais complexo sem o Lucas do que já era com ele. Esse mundo é muito louco e, agora, um pouco mais chato também. Parece até que o Lucas largou sua chatice no mundo e virou pó, sabe? As coisas continuam aí, como sempre, mas agora faz tempo que não aparece alguém que manje delas de verdade como Lucas manjava. Ele era mala, mas era foda – perdão pela palavra novamente. Engraçado isso tudo, na verdade: o que mais irrita todo mundo nessa história toda do Lucas é ter que sentir essa saudade daquele filho-da-puta!

08/05/2007

Encontro na alameda de figueiras

Sem voz, ele caminhava por uma alameda de figueiras, sozinho. O dia já ia tarde e não fazia o menor sentido andar tentando se equilibrar em raízes tão irregulares quanto as das figueiras. Parecia não se importar, na verdade. Avançava lentamente, tropeçando algumas vezes, sem perceber que sujava a barra de sua calça preta com o pó vermelho-alaranjado que cobria a paisagem.

Alguns pássaros passavam por aquela alameda. Ele chegou a um banco na beira do caminho e sentou-se de leve, como um amante que aguarda. Estava pronto e aquele era o lugar combinado. Fazia tanto tempo que não se viam que ele se perguntava se ela o reconheceria agora, mas, na verdade, temia o contrário. Remoía seu nome como um mantra enquanto os pássaros o distraíam superficialmente.

Resolveu assobiar para passar o tempo, como costumava fazer antigamente. Antigamente. Essa era uma palavra que ele nunca imaginou usar para definir qualquer momento de sua vida e, no entanto, ali estava ele assobiando como antigamente. Onde estaria ela? Não conseguia mais criar uma imagem dela a que pudesse se apegar, essa era a verdade. Assobiou mais alto e sua garganta machucada doeu um pouco.

Olhava para o caminho que seguia na direção oposta da qual tinha vindo. Estava bastante atento a qualquer sinal de movimento e a miragem dela o espreitava na distância enquanto o dia acabava de vez. Será que ela ainda lembrava do combinado? A alameda lembrava, o banco lembrava, o pó vermelho lembrava. Ele sabia claramente que só faltava reconhece-la naquele começo de noite que tudo estaria acabado. Para além desse encontro, tudo era certo, estava acertado com muita antecedência, era a natureza das coisas.

Os pássaros foram se calando pouco a pouco e as raízes das figueiras tomaram contornos surreais um tanto quanto assustadores. A falta de luz cansava sua vista e aumentava sua ansiedade, mas sabia aparentar calma bem para quando ela chegasse. No entanto, ainda lembrava claramente dos olhos de fogo dela atravessando sua mente expondo cada segredo seu e isso voltou a inquieta-lo. Batia os dedos ritmicamente nas pernas da calça acompanhando sua música nervosa.

Na distância escura, uma ponta de claridade sobrenatural se aproximava. Assim que a percebeu, ele sentou-se mais ereto no banco. Era ela, afinal, quem mais poderia ser? Aquela alameda era deles e ninguém se atreveria a andar sobre aquele caminho cheio de raízes sem enxergar. Só ela seria capaz disso, quase flutuando, com seus olhos de fogo. Parou de assobiar e engoliu em seco para lubrificar sua pouca voz e, pela primeira vez em todo esse tempo, ele se perguntou se estava apenas ansioso ou se sentia medo.

Ela parou de se aproximar a algumas figueiras de distância dele e parecia avaliar aquele homem sentado no banco. Ele não sabia dizer se aquela era realmente ela: não serviam de nada seus olhos cansados na noite agora adulta. Pareceu a ele que os pássaros voavam todos em fuga, mas não era verdade, eles estavam tranqüilos. A longa alameda de figueiras assistia os dois indo para o inevitável encontro tão esperado.

Ele abriu a boca para dizer o nome dela, mas não conseguiu falar. Ela perguntava muda, com seu olhar vazio, quem era aquele homem. Sabia que era ele, mas nada podia fazer enquanto ele não a chamasse pelo nome. Precisava dessa pequena prova: era parte essencial do combinado, uma espécie de assinatura em uma carta de amor, em um contrato ou em uma sentença.

Ele fechou os olhos para se concentrar e vinham na sua cabeça, em sucessão, imagens, canções, lembranças, mas nenhum nome. Como era isso possível se até agora ele o repetia e o desejava? A terrivelmente fria presença dela tornava tudo difícil e pesado: o peso de uma vida no seu ombro. Sentia que suas pernas não o agüentavam mais e, quando viu, estava apoiado de joelhos em uma raíz de figueira próxima. Ela sabia que era ele, ele tinha certeza disso enquanto sentia seu cheiro de flor de dama-da-noite e parafina. Por que ela não vinha até ele? Sentiu, como não sentia a muito tempo, a rejeição dos desprezados.

Lentamente, ela continuou o caminho que fazia, flutuando sobre as raízes, enquanto ele buscava entre os ecos de seus assobios a antiga melodia do seu nome. Ela de costas não iluminava mais o homem com seus mórbidos olhos de fogo, apenas pairava pálida em sua pouca luz. Ele estava agora ainda mais sozinho, com aquela presença que não podia se consumir ainda e que se tornava mais fraca. Na escuridão, apoiou suas mãos no chão de pó da alameda, engolindo em seco novamente.

Tinha de tentar alcançá-la. Alimentando-se desse pensamento, levantou-se e tentou correr em seu encalço, mas tropeçava em cada uma das raízes de figueira no caminho. Os pássaros nas árvores qause sentiram pena dele enquanto ela se afastava, rapidamente como só ela poderia, parecendo decepcionada. Ele caiu no chão e, cansado, não conseguiu se levantar por algum tempo. Sabia que demoraria muito até encontrá-la de novo, de acordo com o combinado, e não era ele quem escolheria a hora. Arrastando-se pelas raízes como um moribundo, chegou até o banco, com sua roupa, antes preta de luto, agora inteira suja de pó.

Viu ela, em um último momento antes de desaparecer na distância escura da alameda, virar-se para ele e gritar suavemente, com sua voz eternamente triste, seu nome indizível. Desapareceu com seu olhar de fogo, levando consigo o silêncio tumular do inexorável que trouxe consigo. Como que automaticamente, o nome começou a repetir-se em sua mente e ele chamou-a na escuridão, mesmo sem voz, mesmo que inútil. Um pássaro assustou-se com aquele grunhido seco que saía da boca do homem e voou para longe. Ela não podia ouvi-lo mais. Sentou-se no banco: agora só restava a ele esperar o sol nascer para poder sair da maldita alameda de figueiras, voltando para onde veio e esperar novamente.

Só então percebeu a sujeira em sua roupa e bateu no corpo para tirar o pó. Batia levemente, mas, aos poucos, suas mãos ficaram mais pesadas e começou a ferir-se, em um trânse desesperado. Repetia seu nome, desejando logo o final, mas agora só restava esperar amanhecer para então aguardar novamente o próximo encontro, inevitável. Precisava dela e a teria um dia, naturalmente, mas o homem de luto vermelho-alaranjado sentia-se abandonado. Aos poucos entendeu que, no mínimo, ela ainda lembrava dele e do combinado. Algum tempo depois, mais calmo e sentado no banco esperando o dia chegar, ouviu os pássaros voltarem a assobiar na distância.

07/05/2007

LXVI

No te quiero sino porque te quiero
y de quererte a no quererte llego
y de esperarte cuando no te espero
pasa mi corazón del frío al fuego.

Te quiero sólo porque a ti te quiero,
te odio sin fin, y odiándote te ruego,
y la medida de mi amor viajero
es no verte y amarte como un ciego.

Tal vez consumirá la luz de enero,
su rayo cruel, mi corazón entero,
robándome la llave del sosiego.

En esta historia sólo yo me muero
y moriré de amor porque te quiero,
porque te quiero, amor, a sangre y fuego.


Pablo Neruda, Cien sonetos de amor

05/05/2007

Hotel S. Jõao

Seu batom deixou marcas no meu cigarro.
Pena que uma bituca jogada fora não vale como troféu.
Vale muito mais meu lençol desarrumado
sujo com seu cheiro barato
mas bom.

Não é bem troféu; é mais uma pequena prova.
E seu cheiro não foi tão barato: custou alguma dor.
É mentira que o lençol fosse meu: foi por algumas horas
e o quarto do hotel guarda ele agora
ou o lava antes, não sei.

Nessa manhã de ressaca,
não lembro da cor do seu batom
e acho que perdi meu isqueiro.

04/05/2007

Pedaços

Você tem cara de poema,
daqueles bonitos mesmo,
que a gente encontra no livro
quando a madrugada vai tarde
e sentimos saudade do que não foi
e nem podia ser, talvez.

Sabe cheiro de terra molhada
quando a chuva vem só depois
de ser pedida mas esquecida,
de tanto que demora em fazer chover?

Se eu pudesse,
eu queria uma overdose de você
sem te consumir.

Você tem olhos de gota d'água,
brilhantes e transparentes,
fazendo perguntas de esfinge.

Gosto disso.

Se soubesse tocar bandoneón,
prometo que fazia para você
um tango bem-humorado,
sorridente e trágico,
descarregando raivas e riso,
pra gente dançar no cotidiano.

Aonde quer que esteja,
invente essa ciranda que é você
e avise se encontrar um poema
com cheiro de chuva amiga
que responda algum dos enigmas
desse seu olhar grande de mata
e de seu sorriso de paz tensa
mas sempre densa, sincera,
com um toque de dúvida.

03/05/2007

Poema 20

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: "La noche esta estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.


Pablo Neruda, Veinte poemas de amor y una canción desesperada, 1924.

Então... Está em espanhol, mas acho que vale a pena tentar ler assim mesmo. Esse poema com certeza perde muito de sua beleza se mudar o som que ele tem, o ritmo. E sempre serve de alguma prática! ;)
Pra quem se interessar mais em Neruda, nesse site da Universidad de Chile têm muitas obras dele disponibilizadas e várias informações sobre o poeta.

02/05/2007

Mãe e filha [...]

Mãe e filha discutem
Pelos remédios do filho
Água!
Uma chegou de longe
E a outra nem um sorriso
Preciso de água!
A mãe finge que é preguiça
A filha quer salvar o irmão
No mar tem água...
Tem alguém aí?

A mãe sabe que ela não entende
Sua verdadeira solidão
Nada.
Ninguém ouve seus gemidos
Não importam suas vontades
O sol tá forte demais aqui
O filho está indefeso
Exposto a qualquer maldade
Estou suando de novo... Droga!
A filha faz que não escuta
O quê a mãe tem a lhe dizer
Mas entende e mesmo assim diz
"Você só pensa em você!"
Onde estão meus remédios?
A mãe se cala com raiva
E diz que perdeu as receitas
Quero voltar, acabou a graça.
A outra não cai na desculpa
Enquanto a mãe diz que não é perfeita
Estou com sono...
A filha abre gavetas
E encontra um papel bem cuidado
O guarda no bolso e sobe as escadas
Para ver o irmão condenado
Acho que aprendi a voar!
A mãe solene fica na cozinha, olhando a gaveta,
Esperando a filha voltar
Olha pra mim, mãe!
A irmã vê o irmão da porta
Mas não se atreve a entrar

Ela percebe seu delírio
Ela percebe meu delírio

A mãe espera aos pés da escada
A filha desce impassível
Volta aqui!
E agarra suas malas perto da porta
Como se a mãe fosse invisível
Volta...
Ela espera a decisão da filha
Com começos de lágrimas nos olhos
Amanhã eu desço pra jantar
A filha diz que se vai como chegou
Como se não importasse, sóbria
A mãe, no limite, pergunta dos remédios
A filha diz que chegarão mais tarde
Purê e bife.
E não ouve os gritos da mãe no batente
Enquanto desliga o alarme
E entra no carro pensando no irmão
Responde à mãe abrindo o vidro
Já já tô melhor...
A mãe se cala e ouve de olhos vermelhos
A filha gritando que quer o irmão vivo
Enquanto acelera e se afasta
Aí eles vão ver!
A mãe sozinha, sua filha foi embora
Ela olha a janela do quarto do filho
E pensa na filha e nas horas
Cadê meu remédio?
Não agüenta mais e acena dizendo tchau
Antes que seu carro dobre a esquina
Não sabe mais o que faz sentindo
Tá calor... Merda de sede!
Mas só importa o que ainda há de vida
Depois da esquina, a filha pára
E rasga a receita em um delírio solene
Acho que no mar tem água...
Seca os olhos pensando na mãe
E, lembrando do irmão, segue em frente

01/05/2007

Em um bar do Cairo

Um homem com muitos braços realizava uma impossível coreografia no canto daquele bar do Cairo. Com um braço arrancava outro e o jogava no ar, esperando apenas o tempo dele cair em uma de suas mãos para continuar pulando no ritmo da canção que o acompanhava. Não era uma dança frenética, ainda que fosse desesperadora. Ás vezes, ele girava em torno de si mesmo enquanto um de seus braços voava. A cada nova mutilação, seu malabarismo ficava mais complexo e bonito. Os clientes do bar olhavam para ele hipnotizados, mas fingindo não se espantar, e o tempo passava.

A canção aumentava de ritmo e a percussão palpitava mais rapidamente naquele bar do Cairo. Poucos braços restavam ao grande malabarista e o chão do bar estava ficando escorregadio, molhado com seu sangue. Claro que isso só tornava a qualidade de sua coreografia ainda mais maravilhosa. O público acompanhava tudo com um interesse sincero emanando de seus olhares blasé. A fumaça dos chás e dos narguilês das mesas misturava-se com suores de expectativa.

Enfim, restaram apenas dois braços ao homem que, procurando com os olhos ao seu redor, foi até uma mesa vaga. A música parou. Sentou-se e continuou equilibrando seus estranhos malabares, enquanto fumava narguilê e tomava chá. Agora, atraindo a atenção de todo os clientes, inclusive o homem que tinha muitos braços, outro homem cruzou os véus azuis no canto do bar. Depois de uma reverência educada acenando com seus múltiplos braços a todos os presentes, ele começou sua impossível coreografia.

Vinha elegante [...]

Vinha elegante, depressa,
Sem pressa e com um sorriso,
E eu, que sinto co a cabeça,
Fiz logo o poema preciso.

No poema não falo dela
Nem como, adulta menina,
Virava a esquina daquela
Rua que é a eterna esquina...

No poema falo do mar,
Descrevo a onda e a mágoa.
Relê-lo faz-me lembrar
Da esquina dura - ou da água.

Fernando Pessoa, 14/8/1932.