28/11/2007

Discurso de agradecimento

A gravidade me guiou até aqui.
A gravidade dos eventos
Que me fizeram optar por cair, digo, sair.

O peso crescente do lucro.
O obsceno peso do topo
Desse a cada dia mais cruel mundo.

As tantas mentiras que contei e ouvi,
Há quem as prefira, acreditando
No homem branco que do cartaz nos sorri.

Comprei seu manual, criei minhas chances.
Pelo teto de vidro, na busca por um segredo,
Traí a mim mesmo e todos ao meu alcance.

Ah, o conforto da caridade usurária,
Que, inconformada, dá ao pobre e empresta a deus
E de brinde traz descontos na carga tributária...

Que livros, me digam, salvo auto-ajuda, escrevi?
Que árvores plantei que ainda não destruí?
Que filhos pari que sejam melhores que eu?

27/11/2007

Hai-kai

Gotas de suor,
Sol a pino, piche mole,
Miragens no asfalto.

26/11/2007

Segunda Pessoa

Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!

Fernando Pessoa - 5/9/1934

Segundo poema do espaço Segunda Pessoa.

25/11/2007

A lua não faz sentido [...]

A lua não faz sentido,
ela simplesmente existe
e nos ilumina
com sua luz indecisa
- e por isso a admiro.

Por nos iluminar,
ainda que indecisa,
por se transformar,
ainda que repetitiva,
e por simplesmente ser
por demais bonita,
admiro a lua,
mas nunca por apenas ser,
já que é fácil demais
ser sem estar viva.

24/11/2007

Rima LIII

Volverán las oscuras golondrinas
en tu balcón sus nidos a colgar,
y otra vez con el ala a sus cristales
jugando llamarán.

Pero aquellas que el vuelo refrenaban
tu hermosura y mi dicha a contemplar,
aquellas que aprendieron nuestros nombres...
¡esas... no volverán!.

Volverán las tupidas madreselvas
de tu jardín las tapias a escalar,
y otra vez a la tarde aún más hermosas
sus flores se abrirán.

Pero aquellas, cuajadas de rocío
cuyas gotas mirábamos temblar
y caer como lágrimas del día...
¡esas... no volverán!

Volverán del amor en tus oídos
las palabras ardientes a sonar;
tu corazón de su profundo sueño
tal vez despertará.

Pero mudo y absorto y de rodillas
como se adora a Dios ante su altar,
como yo te he querido...; desengáñate,
¡así... no te querrán!

* * *

Voltarão as escuras andorinhas
seus ninhos na varanda a pendurar,
e outra vez com as asas em seus vidros
brincando vão chamar.

Mas aquelas que o vôo suspendiam,
tua beleza e meu júbilo a fitar,
aquelas que aprenderam nossos nomes...
essas... não vão voltar!

Voltarão as espessas madressilvas
de teu jardim as cercas a escalar,
e novamente à tarde, ainda mais belas,
suas flores vão lançar.

Mas aquelas molhadas pelo orvalho,
cujas gotas olhávamos brilhar
e cair como lágrimas do dia...
essas... não vão voltar!

Voltarão, sim, do amor em teus ouvidos
as palavras ardentes a soar;
teu coração, de seu profundo sono,
talvez despertará.

Mas mudo e extasiado e de joelhos,
como se adora a Deus frente ao altar,
como te amei um dia... ; desengana-te:
assim... não vão te amar!

Gustavo Adolfo Bécquer (1836-1870)


Descobri esse poema na edição 8 da Revista Palavra, dos caras da Le Monde Diplomatique Brasil. Vale a pena checar o que eles estão publicando.

12/11/2007

Segunda Pessoa

Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.

Fernando Pessoa - 1931

Esse é o primeiro post de Segunda Pessoa, um espaço
semanal para a poesia de Fernando Pessoa.

11/11/2007

Hieróglifo

Ela tem uma tatuagem na nuca. É um nome ou apenas uma palavra, mas não consigo ler, o quarto está escuro demais. Os movimentos de seus cabelos atrapalham minha leitura. Parece até que foi escrita à caneta, mas a palavra não se borra ao meu toque, apesar do suor. Com algum incômodo, chego mais perto e tento ler, inutilmente. Não sei o que pensar disso, nem o que sentir.

De olhos fechados, tento esquecer, mas não adianta, o borrão dança na minha frente de qualquer jeito. Um fogo sobe pela minha espinha e sinto muita raiva. Minha respiração arde, meus dedos travam. Desce um choque pelo meu braço, ela grita algo incompreensível me pedindo para continuar. Sua respiração pesa, sua nuca queima nos meus olhos cada vez mais.

O arrepio no meu corpo cresce de intensidade junto com a raiva. Como nunca percebi aquilo antes? Minha raiva rapidamente vira força e força, movimento. Aperto as mãos tentando esquivar minha paranóia, ela agita seu corpo ao meu toque. A velocidade de meus movimentos me causa alguma dor, mas não posso parar, ela não me deixa. Sua respiração dita o ritmo de meus pensamentos. Toco seu rosto, ela chora e beija meus dedos.

Não vejo seu rosto mas sei que sorri. Minha garganta raspa em sons desesperados. Uma palavra desconhecida me faz querer morrer ali. Uma convulsão sobe pelo meu corpo, minha cabeça se joga para trás, meus dentes se apertam e ouço ecos de um gemido que se aproxima galopando na distância. Sinto todos seus músculos retesados, relaxando aos poucos, mas não posso parar. O fim só chega numa exaustão que gela meus nervos, apagando tudo menos a tatuagem.

Sinto o cheiro de seu cansaço com meu rosto próximo de seu pescoço. Ela dorme, mas o nome, ainda invisível, não me deixa acompanhá-la. Não fecho meus olhos, que se incomodam com seus cabelos, enquanto tento sentir algo. Palavras voam nas paredes do quarto e tremem. Espero algum tempo e a acordo com uma mordida leve, perguntando o que estava escrito em sua nuca. "Amor", ela murmura e volta a seu sono depois de me beijar.

Silêncio no quarto, ela dorme como um anjo inocente. Estou cansado, mas levanto e acendo um abajur. Nunca seria capaz de entender o que estava escrito, a tatuagem é um ideograma em tinta preta na sua pele clara. Toco sua nuca e apago a luz do quarto. Vou até a cozinha e acendo um cigarro, apesar de meu isqueiro quase não pegar, mesmo sendo novo. Acho que nunca vou entender o motivo. Afundando a cara nas minhas mãos, percebo que nunca entenderei o motivo, mas foda-se.

06/11/2007

tanto o não dito [...]

tanto o não-dito
quanto o que se diz
existe não sendo
e tem valor por si
é consciente
sonho de dia
e realidade viva
de noite.
em silêncio
diz-se muito,
de maneira eloqüente,
sobre o mundo.
inconscientemente
calculam-se
equações e metáforas
nas horas perdidas
a se desfragmentar
as memórias do dia.
um gesto
pra carta rasgada,
pra boneca quebrada,
pra lembrança esquecida,
numa estranha poesia
feita de mímica.