10/04/2007

Trem

O quê o homem de azul não sabia naquele momento era que aquele seria o último trem que saía de sua estação no meio do deserto. Não que saber disso naquele momento fosse fazer alguma grande diferença a longo prazo, mas talvez fosse uma nota interessante a ser feita. Se tivesse também as estatísticas de tal data em mãos, com certeza as registraria aqui, mas, paciência, não se pode ter tudo. O homem de azul não demorou a ficar muito para trás e virar somente um ponto ao longe. O trem corria rápido, apitando, bufando, sufocando. Uma imensa distância a correr em frente, um ponto escuro com uma partícula azul nele para trás.

Assim corria o trem, completamente vazio, sem maquinista, passageiro ou clandestino, sem nada. Rapidamente devorava os trilhos que pisava. Tamanha era a sua fome que realmente engolia os longos trilhos de ferro com seus dormentes de madeira. O trem vazio não deixava rastros além de sua fumaça branca, que não durava muito no ar. Quem passasse por aquelas bandas desertas, apenas cinco minutos depois que fosse, não teria a menor idéia de que ali passara um trem tão poderoso como aquele. Talvez nem o homem de azul na estação tivesse alguma noção do poder daquele trem.

Ele nunca atrasava - que fique claro que aqui a ambigüidade do pronome é proposital. Imagine o tímido espanto do homem de azul ao perceber que agora não adiantava de nada sua pontualidade. Afinal, assim que o trem saiu da estação com sua velocidade faminta ele soube que aquele era o último trem que saía de sua estação. “Aquela máquina é formidável”, pensou o homem de azul, olhando para sua patética estação sem trilhos e sem gente nenhuma, no meio do deserto. Não conseguiu evitar um suspiro seco. Sentiu um vento morno chegando e tocando seu rosto.

Na verdade, era sempre assim depois do trem, mas o homem nunca teria como saber isso de antemão. Começava a soprar um ar gasto sobre onde antes estavam os trilhos; parecia carregar algo de novo e de destrutivo também. O horizonte na direção de onde ficava o caminho dos trilhos estava vazio – era apenas chão novamente, sem qualquer significado distintivo, como devia ter sido a muito tempo, antes da estrada de ferro. O homem sentiu sede por culpa do vento, mas sentia-se cansado demais para ir até o tanque de água e sacia-la.

O vento tornava-se mais forte e um estrondo crescente parecia que vinha rolando, crescendo, aumentando, tomando a forma de uma onda, se aproximando. Vinha de onde o trem tinha vindo, seguia o caminho dos trilhos engolidos e era como se perseguisse o trem, pensou o homem de azul. O grande estrondo ainda não tinha chegado até a plataforma da estação, onde estava o homem, sozinho. Começaram a estalar as tábuas do telhado da estação, alguns restos de plantas secas foram arrancados e voavam fazendo cirandas, logo desaparecendo de vista. O homem de azul sentia o som daquele vento arrancando suas roupas azuis aos poucos, rasgando-as como se fossem uma bandeira que ficou tempo demais hasteada.

O homem de azul acabou ficando nu logo; era apenas um homem, não mais um homem de azul. O estrondo passava ensurdecedor e rápido, na velocidade do trem. Seguiu seu caminho e desapareceu ao longe. A estação permaneceu, semi-destruída. Na verdade, tão destruída que não se podia chamá-la de estação mais.

O homem olhava ao seu redor, para o horizonte, para o céu, para um lado onde estavam trilhos, para o outro lado. Sempre devagar, entre calmo e um pouco chocado, talvez os dois. Começou a prestar atenção nas vezes em que piscava os olhos. Uma, duas, três a cada grande olhar. Percebeu que da direção de onde tinham vindo o trem e o vento vinha uma escuridão densa. E, de olhos fechados, não se sentiu espantado, nem sequer timidamente.

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