09/10/2007

Coadjuvante


Momentos antes de tudo, Daniel calmamente olhou para trás pelo retrovisor do banco de passageiro. Ele lembrava claramente disso, independente de todo o resto. No fundo, que diferença faz que ele não saiba o que foi o "tudo" que veio logo depois? Ninguém sabe, na verdade ninguém tem como saber, o quê aconteceu com ele. Mas pesava nele lembrar apenas desse antes impossível. Era impossível, pois como seria um antes sem um depois? Claro que existia o depois que era o presente de Daniel-lembrando, mas e aquele "depois" logo depois do "antes"? O "tudo"? Em que gaveta de seu criado-mudo de sanatório Daniel guardava essa informação?

Não adiantava se fixar em um ponto distante no horizonte pontilhado da rodovia naquela imagem da memória. Resposta nenhuma viria dali e Daniel tinha plena consciência disso. Ainda sentia as dores de sua tendinite na mão esquerda, como sempre sentira, característica perene. Olhava para seu corpo em busca de cicatrizes de alguma cirurgia de emergência ou, no mínimo, alguma pancada ou lesão nova. Estava igual ao de sempre, ao que tudo indicava. Os outros, seus semelhantes, passavam pelo seu quarto respeitando alguma distância, em uma estranha reverência espontânea, talvez uma admiração pelo acaso.

Daniel estava limitado a dois momentos: aquele antes imóvel de uma memória inexplicável e esse presente de espelho, circular. Não sabia e não se preocupava em saber sobre o contexto em que estava realmente ou em saber o que tinha acontecido logo depois, na verdade: um terrível evento, de qualquer maneira. Precisava desesperadamente conseguir projetar sua mente para aquele antes, para só então continuar em frente e ver o momento seguinte. Era totalmente incapaz de perceber a impossibilidade do que desejava, por mais que os outros, seus colegas, tentassem poupá-lo da decepção que sentiria. Afinal, era como eles e eles eram aquilo apenas: um antes vazio antes daquilo que realmente importava.

Ele sentado sob uma árvore, lutando contra o reencontrar desse carma, imitava um Buda fútil aos olhos de todos os outros. Descontínuo, buscava a seqüência do fio da meada perdido. As linhas de seu pensamento, presas em limites desconhecidos, externos a ele, naufragavam cada tentativa sua. Parecia buscar a continuação de sua história em uma história além, turva, sinuosa, grande. Os outros, seus fantasmas, com seus silêncios inexpressivos, cercavam Daniel, chamando-o para um corredor de entendimento comum, em uma espécie de ritual de iniciação, consenso. Ele se negava e persistia em sua busca pela compreensão de sua memória do antes, sozinho. Perguntava a si mesmo horas a fio os significados de cada elemento daquele fragmento de lembrança e não entendia.

Daniel estava preso à sua irrelevância e incoerência. Aos poucos acabou por perceber todo o peso da busca que realizava. Ele enfrentava o tempo e sua consciência, assim como a resistência invejosa dos outros, sempre distantes. Uma névoa desfocada de desatenção impedia que ele reconhecesse qualquer rosto neles. Os múltiplos braços hindus de Daniel encaixavam peças quebradas de um quebra-cabeça sem modelo ou figura. Ainda lembrava apenas de um antes inútil e um depois residual, mas agora, e essa percepção era interessante, tinha uma história, ainda que bizarra, de sua busca impossível. Confrontou a natureza dos outros, que era sua, com uma raiva muda em seu rosto. Então, no final do dia, com um salto, Daniel enfim acabou por esquecer do banco de passageiro e dos espelhos e foi viver sua vida em paz.

0 comentários: