A onda cinza e o céu de brigadeiro
Há tempos que esse azul infinito, céu de brigadeiro, tem me assombrado. Dia após dia, eu o vejo pela janela do meu quarto, meu pequeno reino. É nele que busco refúgio e consolo para tantas decepções, desilusões e medos. Quem me dera pudesse sair daqui e ir enfrentá-los! Minha doença me prende em meu pequeno quarto melhor do que mil correntes e algemas. Sinto dentro de mim, em meus sonhos, os ventos desse céu inalcançável.
Deitado em minha cama, meu catre, vejo as horas passarem nos matizes do azul do céu. Olhar pela janela tornou-se uma maneira de viver sem me preocupar com a realidade decadente à minha volta. O quarto, com suas estantes e porta-retratos empoeirados e sorridentes, é a sombra que restou de meus amores… A casa, que um dia foi uma dança bela e complexa de amigos, idéias e vida, cai hoje aos pedaços. Ainda ouço os ecos das risadas e do burburinho das discussões. Os ecos de tantos suspiros… Mas o tempo e a cidade devoraram tudo e só me restaram ossadas, memórias.
As aparências apodrecem como meu corpo, a casa, o quarto. A cidade de fachadas belas é juíza cruel e fria ditadora e, em nome da modernidade e de novos tempos, destrói o que considera impróprio. De minha janela, vejo os prédios se multiplicarem, ervas-daninhas gigantes de uma selva de pedra. Meu quarto foi condenado simplesmente porque é velho como eu. Minha vida já não importa. Já fui notificado, já aceitei os termos do contrato.
A ambulância chegará em poucos minutos para me levar para um asilo. Qual é a necessidade de me levarem? Quero ficar aqui… Batem cada vez mais forte na porta. A janela. O cinza dos prédios e seus sorrisos sarcásticos de vencedores encobrem o azul do céu. Como uma enorme onda que se projeta sobre um castelo de areia.
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