25/04/2007

Quebra de rotina

Fazia mais de dois meses que não chovia na minha cidade e parecia que aquele dia seria tão seco quanto os outros. Céu de brigadeiro. Cortina de renda branca feita de pó. Eu tinha a certeza de estar dentro de algum filme antigo, com suas cores surreais. O escritório latejava nos meus ouvidos como um rufar de tambores de execuções em praça pública. Precisava sair dali. O Sol, que entrava brilhando listrado pelas persianas, velava meus devaneios, mas eu sabia que aquilo não iria durar muito tempo.

Atendi ao telefone ao primeiro toque, mecanicamente. Era do médico, que tinha novidades para mim, mas não queria dizê-las por telefone. Ordenaram que eu fosse ao consultório o mais rápido possível. “Agora?”, eu disse. “Sim, agora”, a secretária respondeu. Desliguei o telefone e saí sem dizer nada. Meu gordo chefe, o senhor Almeida, entenderia a minha situação, pois ele também tinha tanto medo de médicos quanto eu e fizera, como um igual a todos nós, esses mesmos exames. Exigências da empresa.

Entrando na sala de espera do consultório, eu senti o forte cheiro de desinfetante que toda sala de espera tem. Um cheiro de ânsia e aflição, de nervosismo. A sala estava vazia e não se ouvia um único suspiro. O chão de pedra fria lembrava-me do chão da casa de minha mãe, limpa e morta. Eu sabia que havia algo de errado naquela sala, em eu estar ali. Enquanto isso, aquela sala continuava vazia, cheirando a medo. Ela continuava eterna, esperando o passar do tempo chegar.

Sentei-me no sofá com pés de pedra e procurei algo para me distrair. Encontrei um livro no meio de tantas revistas de arquitetura e oncologia. Nada na capa, apenas pó. Antes de ler as páginas amareladas, fui beber água e só então vi que a sala tinha uma janela que dava para a rua. Eu não errara: aquele dia estava tão seco quanto os outros. A cortina de renda estava lá, além da porta.

Voltei para o sofá e comecei a ler. História engraçada aquela, a princípio. Familiar. Falava de uma mulher e seu filho, de um pai que caía no mundo. Contava sobre rebeldia, a surra, a fuga, a raiva e a culpa. A mãe, como minha mãe, morria sem saber de nada, sem saber dos sofrimentos do garoto depois. O filho começou aquele esquema de trabalho-escola noturna, depois de ter trabalhado o dia inteiro. Acabavam seus estudos e sua rebeldia, se formava. Como eu. Tudo como eu. Vivia sozinho. Eu. Chorava de medo. Eu. O livro prendia-me.

Esqueci-me do médico, do chefe, do escritório. Era como seu um livro pudesse saber de tudo. Cada medo, ele contava cada medo meu. Os anos passavam para o filho como passaram para mim, sozinho, medo de sentir. Cada página um momento, e o livro nunca acabava. O filho foi para um médico, encontrou um livro e o leu, desesperado, pois o livro contava a história de um homem como ele. Virava as páginas rapidamente, e o livro não acabava. A cada página o filho tinha lido sobre o homem virando mais uma página, mais uma página… Joguei o livro no chão sem me preocupar se alguém ouviria. Suando, senti sede, precisava de água. Enchi outro copo e bebi-o perto da janela.

Na janela da sala vi uma nuvem, a chuva. Tinha começado a chover. Errei. Tremia segurando o copo, o livro no chão. Uma campainha tocou na sala e deixei o copo cair. Era a secretária que chegava e que me encontrou limpando a água do chão, segurando, ineficiente, as manifestações do choro. Perguntou mecanicamente meu nome e minha empresa, eu respondi. De maneira quase óbvia, repetiu a pergunta, mexendo nos seus papéis, com cara de engano. “O senhor não é o senhor Almeida?” disse. Respondi que não, atônito e, quem sabe, aliviado. “Me desculpe, senhor, houve um erro em nosso cadastro…”. Não a deixei terminar: “O senhor Almeida é o meu chefe”. Depois de alguma conversa, já mais calmo, saí daquela sala. Fugi.

O livro continuava no chão, com suas páginas olhando para a porta por onde saí, tinha certeza, sua capa de pó derretida na pedra fria do chão. Fora do consultório, eu o via pela janela. A chuva lambia meu rosto. O pó escorria do meu medo. A cortina sumira. A sombra da secretária guardava o livro entre as revistas. Chovia e para mim não importava a página seguinte. Respirei fundo o ar úmido da chuva e não pude deixar de pensar: “Pobre senhor Almeida!”.

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