09/04/2007

Primeiro de fevereiro

E, de repente e quebrando a estática, o estojo da máquina fotográfica disse para a toalha que servia de apoio para minha caixa-visão:

- Quem dera essa noite não fosse tão fria e azul, não é, Rita?

- Claro que sim! - respondeu a toalha - Cansa ficar em silêncio no escuro. Sinto medo.

A essas alturas já não interessava o que diziam, mas faziam companhia uma para a outra. O ar estava com gosto de sal, úmido. Estava com saudades enquanto escrevia e ouvia. Ouvia uns pedaços desconexos de canções em castelhano, o que criava uma sensação de deslocamento ainda maior para os flamingos azuis claros que cruzavam a janela, silhuetados pela luz laranja dos postes. Deslocamento em slow-motion através de um sonho.

- De que adianta passar as noites iluminando a compreensão de mais esse anônimo que senta à minha frente? De que adianta? Eu te pergunto, amiga. Ele não percebe, não sente… - disse a visão, antes calada, sobre a toalha.

- Deixa ele ser, let it be… Quem sabe o que pode acontecer nesse tempo que ele passa sentado aí? - disse Rita, cansada do peso da amiga sobre ela.

É tão estranho perceber que encaixotei minha visão dentro de uma caixa luminosa de plástico e componentes eletrônicos. Essa caixa é minha visão e a extensão de meu tato até… Através dela eu imaginava, naqueles momentos, o quê minha amada sentia, lá longe. Como estaria o seu rosto? Estava ela chorando? Só a caixa me respondia pistas incompletas, que deixavam a platéia de sombras, apoiadas feito papagaios em meus ombros, ainda mais insatisfeita e curiosa.

- O estojo dormiu? - disse minha visão.

- Sim, creio… Mas esqueça dele, ele não muda nada. - respondeu Rita.

- Por quê, Rita? Não era ele que queria uma noite mais clara, diferente? Assim como você? Cadê a compaixão por aqueles que sentem o mesmo medo?

- Ele não entende o medo que sinto. Apenas repetia um eco de comentário desse anônimo que agora aluga o seu funcionamento, minha amiga. Apenas isso.

- Ah! Mas disso eu não sabia! - mostrou-se surpresa, ainda que por uma fração de segundo, minha visão, e depois olhou para mim - Se bem que… É bastante óbvio, na verdade. Para alguém que apenas aguarda a hora de ser refúgio e proteção, incompleto e dependente, repetir um eco é a ordem natural… Toda caverna ecoa, não é? Tudo o que é vazio, porém profundo o suficiente…

Nesse momento, os flamingos começaram a ir embora, sair de cena, com caras inchadas de sono, feito a minha. Minha onipotência falha, minha onisciência parcial e minha presunção estúpida faziam uma ovação em ola nas arquibancadas vazias e sujas de minha cabeça. Por que eu insistia tanto em saber, se nada podia fazer? Custava tanto ignorar, desligar minha visão e alegremente me jogar no escuro torpor do seguir em frente. Era difícil entender a liberdade de guardar uma dor, de se desesperar sozinho por querer. O gato egoísta que dormia no sofá ao meu lado sabia de quê eu falava e discordava profundamente de minha opinião, como ele já tinha, com muita fleuma, exposto para mim durante o jantar. Astuto orador, ele! Quem dera eu também tivesse bigodes e botas de qualidade!

- Quero dormir e descansar dessa ansiedade toda que despejo… - disse minha visão.

- Vá dormir, então! Não perde nada dormindo… O anônimo seguirá escrevendo e lendo mais algum tempo, não se preocupe. - respondeu secamente Rita.

- Sim, claro! Mas seria gratificante vê-lo sorrir, ou mudar… É sempre algo bom ver um remador solitário vencer uns dois pares de ondas do mar aberto.

- Nunca um remador está solitário, amiga. Sempre terá o mar, sua deriva e a espera pela terra que o apóia e mantém vivo. Não pode existir mar aberto sem ilhas, amiga… Deixe-o de olhos fechados e à deriva, e vá dormir.

- Boa noite, Rita… Desculpe pelo peso de sempre.

- Tudo bem, amiga… De alguma maneira, ainda que muito fraca, essa sua luz elétrica serve para aliviar um pouco esse medo que sinto às vezes - disse a toalha quase sussurrando, enquanto a visão, já adormecida, não poderia mais ouvi-la.

Estou ilhado novamente, esperando meus olhos não abrirem por exaustão, fadiga. Os flamingos azuis já estão longe, navegando sobre ondas ainda mais claras que eles, e a luz que os enegrecia e contornava misturou-se ao brilho baço do amanhecer. A ilha estava feita um gato egoísta enrolada em cobertas distantes, dormindo ainda irritada com seu pensamento do remador anônimo, mas compreensiva. A ansiedade cuspiu no ar um cheiro novo de sono tardio, velho conhecido. Que calor unia esses pensamentos? A caixa da visão estava escura, desnecessária por algum tempo, enquanto ecos me levavam de volta para onde sentia a memória doce de todos os dias ao lado da minha amada. O estojo da máquina fotográfica ecoava um grito seu de um instante perdido de amor, e assim desejava ao dia que nascia uma boa noite.

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