08/05/2007

Encontro na alameda de figueiras

Sem voz, ele caminhava por uma alameda de figueiras, sozinho. O dia já ia tarde e não fazia o menor sentido andar tentando se equilibrar em raízes tão irregulares quanto as das figueiras. Parecia não se importar, na verdade. Avançava lentamente, tropeçando algumas vezes, sem perceber que sujava a barra de sua calça preta com o pó vermelho-alaranjado que cobria a paisagem.

Alguns pássaros passavam por aquela alameda. Ele chegou a um banco na beira do caminho e sentou-se de leve, como um amante que aguarda. Estava pronto e aquele era o lugar combinado. Fazia tanto tempo que não se viam que ele se perguntava se ela o reconheceria agora, mas, na verdade, temia o contrário. Remoía seu nome como um mantra enquanto os pássaros o distraíam superficialmente.

Resolveu assobiar para passar o tempo, como costumava fazer antigamente. Antigamente. Essa era uma palavra que ele nunca imaginou usar para definir qualquer momento de sua vida e, no entanto, ali estava ele assobiando como antigamente. Onde estaria ela? Não conseguia mais criar uma imagem dela a que pudesse se apegar, essa era a verdade. Assobiou mais alto e sua garganta machucada doeu um pouco.

Olhava para o caminho que seguia na direção oposta da qual tinha vindo. Estava bastante atento a qualquer sinal de movimento e a miragem dela o espreitava na distância enquanto o dia acabava de vez. Será que ela ainda lembrava do combinado? A alameda lembrava, o banco lembrava, o pó vermelho lembrava. Ele sabia claramente que só faltava reconhece-la naquele começo de noite que tudo estaria acabado. Para além desse encontro, tudo era certo, estava acertado com muita antecedência, era a natureza das coisas.

Os pássaros foram se calando pouco a pouco e as raízes das figueiras tomaram contornos surreais um tanto quanto assustadores. A falta de luz cansava sua vista e aumentava sua ansiedade, mas sabia aparentar calma bem para quando ela chegasse. No entanto, ainda lembrava claramente dos olhos de fogo dela atravessando sua mente expondo cada segredo seu e isso voltou a inquieta-lo. Batia os dedos ritmicamente nas pernas da calça acompanhando sua música nervosa.

Na distância escura, uma ponta de claridade sobrenatural se aproximava. Assim que a percebeu, ele sentou-se mais ereto no banco. Era ela, afinal, quem mais poderia ser? Aquela alameda era deles e ninguém se atreveria a andar sobre aquele caminho cheio de raízes sem enxergar. Só ela seria capaz disso, quase flutuando, com seus olhos de fogo. Parou de assobiar e engoliu em seco para lubrificar sua pouca voz e, pela primeira vez em todo esse tempo, ele se perguntou se estava apenas ansioso ou se sentia medo.

Ela parou de se aproximar a algumas figueiras de distância dele e parecia avaliar aquele homem sentado no banco. Ele não sabia dizer se aquela era realmente ela: não serviam de nada seus olhos cansados na noite agora adulta. Pareceu a ele que os pássaros voavam todos em fuga, mas não era verdade, eles estavam tranqüilos. A longa alameda de figueiras assistia os dois indo para o inevitável encontro tão esperado.

Ele abriu a boca para dizer o nome dela, mas não conseguiu falar. Ela perguntava muda, com seu olhar vazio, quem era aquele homem. Sabia que era ele, mas nada podia fazer enquanto ele não a chamasse pelo nome. Precisava dessa pequena prova: era parte essencial do combinado, uma espécie de assinatura em uma carta de amor, em um contrato ou em uma sentença.

Ele fechou os olhos para se concentrar e vinham na sua cabeça, em sucessão, imagens, canções, lembranças, mas nenhum nome. Como era isso possível se até agora ele o repetia e o desejava? A terrivelmente fria presença dela tornava tudo difícil e pesado: o peso de uma vida no seu ombro. Sentia que suas pernas não o agüentavam mais e, quando viu, estava apoiado de joelhos em uma raíz de figueira próxima. Ela sabia que era ele, ele tinha certeza disso enquanto sentia seu cheiro de flor de dama-da-noite e parafina. Por que ela não vinha até ele? Sentiu, como não sentia a muito tempo, a rejeição dos desprezados.

Lentamente, ela continuou o caminho que fazia, flutuando sobre as raízes, enquanto ele buscava entre os ecos de seus assobios a antiga melodia do seu nome. Ela de costas não iluminava mais o homem com seus mórbidos olhos de fogo, apenas pairava pálida em sua pouca luz. Ele estava agora ainda mais sozinho, com aquela presença que não podia se consumir ainda e que se tornava mais fraca. Na escuridão, apoiou suas mãos no chão de pó da alameda, engolindo em seco novamente.

Tinha de tentar alcançá-la. Alimentando-se desse pensamento, levantou-se e tentou correr em seu encalço, mas tropeçava em cada uma das raízes de figueira no caminho. Os pássaros nas árvores qause sentiram pena dele enquanto ela se afastava, rapidamente como só ela poderia, parecendo decepcionada. Ele caiu no chão e, cansado, não conseguiu se levantar por algum tempo. Sabia que demoraria muito até encontrá-la de novo, de acordo com o combinado, e não era ele quem escolheria a hora. Arrastando-se pelas raízes como um moribundo, chegou até o banco, com sua roupa, antes preta de luto, agora inteira suja de pó.

Viu ela, em um último momento antes de desaparecer na distância escura da alameda, virar-se para ele e gritar suavemente, com sua voz eternamente triste, seu nome indizível. Desapareceu com seu olhar de fogo, levando consigo o silêncio tumular do inexorável que trouxe consigo. Como que automaticamente, o nome começou a repetir-se em sua mente e ele chamou-a na escuridão, mesmo sem voz, mesmo que inútil. Um pássaro assustou-se com aquele grunhido seco que saía da boca do homem e voou para longe. Ela não podia ouvi-lo mais. Sentou-se no banco: agora só restava a ele esperar o sol nascer para poder sair da maldita alameda de figueiras, voltando para onde veio e esperar novamente.

Só então percebeu a sujeira em sua roupa e bateu no corpo para tirar o pó. Batia levemente, mas, aos poucos, suas mãos ficaram mais pesadas e começou a ferir-se, em um trânse desesperado. Repetia seu nome, desejando logo o final, mas agora só restava esperar amanhecer para então aguardar novamente o próximo encontro, inevitável. Precisava dela e a teria um dia, naturalmente, mas o homem de luto vermelho-alaranjado sentia-se abandonado. Aos poucos entendeu que, no mínimo, ela ainda lembrava dele e do combinado. Algum tempo depois, mais calmo e sentado no banco esperando o dia chegar, ouviu os pássaros voltarem a assobiar na distância.

2 comentários:

Liene Saddi disse...

Finalmente alguém conseguiu colocar em palavras a sensação do "não consigo gritar em sonhos". Pelo menos foi a mesma sensação que tive ao ler seu texto.
Grande beijo, e parabéns.

Anônimo disse...

Texto densamente poético !