12/02/2008

Leveza

Ela vem como se nada
(como o sono dos cansados vem)
e não deixa cicatrizes,
deixa simples marcas
que não causam dor e, sim,
saudades.

Só de ver a gente aprende
a não deixar pegadas e, sim,
aromas pelos lugares
e sente-se na hora
a leveza de algo que ela traz
consigo e que não consigo entender.

Depois que ela passa,
as cortinas deslizam no fim
deixando um fino traço
de sua presença no veludo
do silêncio da casa vazia
e me resta uma gravura
distante de um sorriso
que se volta para mim.

08/02/2008

Noturna


Entre estrelas nós andamos
Procurando vida
Dentro de todos os homens
De todas as vilas
Talvez cada movimento
Pêndulos e dias
Seja a prova fundamental
De que ela exista
Talvez não seja visível
Mas vive nas vilas
Nos pêndulos vai e volta
Escorrendo viva

Onde será que vive nossa sina,
Senão é bem perto, bem escondida,
Atrás de faróis de postes de esquinas,
Brilho que tece o fio de nossas vidas?

Atravessando janelas
Como a brisa quente
Que vem de longe e de perto
Pessoas, Poente
No calor de sentimentos
Janelas da gente
A Lua guarda o silêncio
Da noite que sente
A vida é curta e bela
Viva, simplesmente
Se esqueça dos seus receios...
Enfim, siga em frente

Esse poema é de 12/08/2004.

04/02/2008

Um reflexo em um momento


O embrulho de meu tio chegou. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, com o passar dos anos, esse dia chegaria. Esse espelho velho, com borda de latão cheia de manchas, me acompanha desde pequeno, quando eu ainda vivia no sítio de minha vó. Lembro-me desse mistério de vidro e metal pendurado na parede do quarto do meu padrinho, que morava em um puxado que dava para o meu quarto. Meu padrinho era engraçado, vivia dizendo que aquele espelho era inútil e sujo. Eu nunca entendi por que ele fazia isso, insultar o objeto na parede.

Abro o pacote e vejo meu reflexo turvo no espelho. Fico espantado: a imagem está muito mais escura do que eu esperava. Sei que ela muda ano a ano, dia a dia, mas não pensava que estaria tão fosca. Talvez sejam as marcas da cidade grande, das preocupações e da euforia de tanta gente estranha junta e, ao mesmo tempo, distante. Mas não me arrependo de minhas escolhas. Sair de Votuporanga era necessário, eu não tinha aonde ir, onde aprender. Conforme eu virava um adolescente e, depois, um adulto, aquela vila e aquele sítio me sufocavam. Depois que meu padrinho morreu meu tio herdou o puxado e, junto com ele, o espelho de borda de latão.

Um homem do campo e um observador com visão para o futuro, esse era meu tio. Foi ele quem me estimulou a estudar e ir para a cidade, lutar por um lugar. Só se esqueceu de me dizer para ser feliz. Cada dia ele se levantava e olhava nesse espelho, que deixava sempre coberto. Entrevia pela porta do puxado o seu rosto antes de descobrí-lo: estava sempre pálido e mórbido. Tinha medo e eu sabia o porquê.

Meu padrinho, antes de morrer, me disse que aquele espelho era amaldiçoado. Eu estava só com ele em seu puxado. Meu padrinho, com olhos fixos no espelho, dizia que ele estava fosco, que ele não se via nas manchas do espelho. No mesmo dia, morreu. Meu tio não tardou a perceber do segredo de espelho. Ele entendeu.

O espelho em minha frente estava ficando sujo. Ou será que era meu reflexo? O tempo passou para mim também. Envelheci e mudei, tinha consciência disso. Meu tio morreu, o sítio ficou vazio. Os bens ficaram comigo e, entre eles, esse pedaço de vidro e latão. Fugi do sítio e venci, tenho meu lugar. Envelheci por isso, lutei. Não preciso de um objeto para lembrar-me de que vou morrer. Quebro o espelho de um só golpe. Por um momento, vejo meu padrinho e meu tio.

Vou à cozinha, pego uma pá e limpo os cacos de vidro do tapete. Misturadas com os pedaços do espelho, há lágrimas. Meu Deus, como passa o tempo!

Esse texto é uma redação da época do terceiro colegial, em 2004.
Fica aqui pra comemorar os 101 posts do blog. Valeu por lerem!