13/05/2007

Desenho

Meu chapéu azul chocava a todos naquele tribunal. A juíza olhava, o guarda olhava, o júri olhava e até mesmo o ventilador de teto cambaleante prestava atenção no meu chapéu. Parece até que ninguém nunca viu um homem de chapéu azul sentado calmamente, desenhando. Meu advogado, defensor público, achava engraçada minha aparência, tenho certeza disso hoje. Isso até que devia ser bom: afinal, assim ele talvez prestasse mais atenção à sua tarefa de tentar me salvar. Não que importasse alguma coisa para mim ou para ele, mas vai saber: a justiça muitas vezes comete atos falhos e perdoa por erro, não por piedosa majestade.

Doze cães de aluguel, raivosos e babando em sua condição de cidadãos comuns convocados, me avaliavam por coisas que eles nunca viram, que não os afetaram e, o que é pior, nem sequer os interessavam. Quero que eles se fodam, hoje mais do que naquele dia. Lá eles no mínimo serviam pra alguma coisa que me entretinha: eram bons modelos com seus olhares estupefatos. Parecia até que eles não se identificavam comigo, ledo engano deles. A minha cara sempre foi um nítido espelho, emoldurado no dia do juízo por um belo chapéu-coco azul.

Já havia dado meus depoimentos e aguardava a juíza ler a sentença, que ainda passava de mão em mão pelos jurados caninos. Eles queriam ter feito cada uma das coisas que fiz, tinha certeza disso. Não conheço um cachorro que seja que não goste de comer carne mal-passada, com algum sangue ainda preso nas veias do corte, ou que não gostasse de esmagar uma presa entre seus dentes. Olhava para meu advogado apreensivo observando, ao som do ventilador de teto dançante, os movimentos em câmera lenta do júri. Ele era tão novinho, devia ter a mesma idade que eu naqueles dias. Bem, ainda deve ter a mesma idade que eu, na verdade.

- Tá chegando a hora do almoço, Luizinho – o carcereiro novato tenta disfarçar seu nervosismo puxando alguma conversa comigo.
- Eu sei olhar relógio, não me enche – respondo, desconfortável: odeio ser interrompido enquanto desenho uma lembrança qualquer.

Não entendi nada da sentença que ela leu, mas sabia muito bem o quê aquilo estava marcando na minha história. Meu advogado não gostou do que ouviu, quis reclamar, mas fiz um sinal pra ele parar quieto no lugar. Aquele momento era meu, um falso gran finale para uma platéia de invejosos. Todos ali conheciam bem o prazer da boca cheia, da fome saciada, e extraíam sua satisfação de mim, da culpa que inventavam para mim. Sou um estrangeiro na terra deles, mesmo que esteja ilhado aqui fazendo turismo por entre dentes de ferro.

Naquele momento lá atrás, fiquei de pé com meu chapéu azul encarando a juíza. Foi generosidade dela me dar aqueles segundos de suspensão antes que começasse meu novo fim. Deixei o desenho que fazia em cima da mesa, um pouco para o lado do advogado, para que ele o levasse de lembrança: gosto de dar presentes às pessoas. Olhei para os outros, que me olhavam, também esperando algo. Pensei em rir, mas não fazia sentido, em ser ainda mais sincero, mas não adiantava, em ficar quieto, mas era um desperdício de tensão, e em mais mil opções. Acabaram meus segundos e fui levado do tribunal. Não resisti à beleza absurda do momento e, ao passar pelo canil, larguei, para grande susto dos meus colegas animais do júri, meu chapéu-coco azul dentro de seu cercado. Aos poucos, à distância, ouvia uivos de vencedores tapados, embriagados de seu poder, mordendo o próprio rabo.

0 comentários: