23/07/2007

Corrida de touros

Um touro azul e preto corria pela rua da minha casa, gritando meu nome e bufando nuvens de sangue. Eu corria dele, tentando achar um balde com água para apagar o fogo que queimava seus chifres, em duas bolas de pano e gordura amarradas lá por algum demônio. Minhas mãos não suavam e meu respirar era tranqüilo, apesar do medo. Afinal, isso não era nada de novo para mim: por mais de 20 anos eu fui o touro que corria pela minha rua. Conhecia muito bem cada etapa da derrota do animal-monstro, como um coroinha ateu sabe uma cartilha decorada de catecismo.

O demônio nunca cansa, ele finge e pára, pensando irracionalmente em seus novos passos. Essa é a hora mais perigosa para quem corre dele (eu, no momento); é aí que ele decide o que vai fazer e, na velocidade de um raio, o faz. Foi assim quando eu-touro matei pisoteada toda uma fileira de gatos que doíam na minha memória. Foi assim também quando queimei com meus chifres de fogo um amor que não funcionou, acabando com ele naquela chama mista de pano e gordura. Quando matei com um par de patadas uma montanha incompreensível de vivências que me alimentaram quando pequeno. Mistérios.

O som das patas no asfalto da rua e o som do bufar que antecede o ataque são os códigos para quem corre. Quando era touro, nunca imaginei que fosse tão difícil ser quem corre dele. Hoje, que sou o eu-corredor, tenho certeza de que essa é uma tarefa ingrata. Mas também sei que não há nada de justo no espetáculo da rua, basta olhar para os pequenos olhos do monstro, afogados em reflexos de chamas.

Corria tanto, fugindo do touro de fogo da minha rua, que nem percebia minhas pernas desmanchando-se em dores e fadiga. Quando virei a esquina da cidade, deixando para trás meu passado, elas pararam de funcionar e afundei meu rosto nos pedregulhos que circundam todas as cidades. As feridas que a brita abriu não doíam e nem deixavam cicatrizes, apesar do sangue que brotava de minha pele, mas coçavam num ardido-queimadura de alergia.

O touro estava longe, mas senti um grande calor dentro de mim. Senti sede, muita sede, e comecei a correr novamente, com um fôlego novo, sem saber o que buscava nas periferias da minha cidade, igual a todas as cidades. Virando esquinas que acabam em descampados encontrei uma velha caixa d'água, com sua estrutura de ferro enferrujado. Parei, bufei e arremeti: uma investida e a água transbordava, torta, pelo chão. Afoguei meu rosto naquela água suja e senti minha sede morrer.

Na distância, as casas da minha rua gritavam, em uníssono, junto com os gatos mortos, o amor que não funcionou e a montanha de vivências, um sonoro e poderoso Olé!. Andorinhas distantes acenavam com lenços brancos demonstrando sua satisfação. Trôpego, em silêncio, senti dó de nós dois enquanto me levantava, orgulhoso pela nossa performance. Um touro jazia morto dentro de mim, desaparecido da minha rua, com chamas apagadas nos chifres, pronto para ser dividido como mera carne.

Não consigo explicar agora, mas, quando o touro era eu, quem afogava minha chama se na solidão da minha rua não havia quem corresse de minhas investidas? Estou confuso e passo a pergunta à platéia da corrida de touros, mas não ouço resposta, somente sons de desaprovação por tamanha falta de claridade, coerência e qualquer sentido. E me vem na cabeça uma só resposta: é apenas a vida.

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