30/04/2007

A onda cinza e o céu de brigadeiro

Há tempos que esse azul infinito, céu de brigadeiro, tem me assombrado. Dia após dia, eu o vejo pela janela do meu quarto, meu pequeno reino. É nele que busco refúgio e consolo para tantas decepções, desilusões e medos. Quem me dera pudesse sair daqui e ir enfrentá-los! Minha doença me prende em meu pequeno quarto melhor do que mil correntes e algemas. Sinto dentro de mim, em meus sonhos, os ventos desse céu inalcançável.

Deitado em minha cama, meu catre, vejo as horas passarem nos matizes do azul do céu. Olhar pela janela tornou-se uma maneira de viver sem me preocupar com a realidade decadente à minha volta. O quarto, com suas estantes e porta-retratos empoeirados e sorridentes, é a sombra que restou de meus amores… A casa, que um dia foi uma dança bela e complexa de amigos, idéias e vida, cai hoje aos pedaços. Ainda ouço os ecos das risadas e do burburinho das discussões. Os ecos de tantos suspiros… Mas o tempo e a cidade devoraram tudo e só me restaram ossadas, memórias.

As aparências apodrecem como meu corpo, a casa, o quarto. A cidade de fachadas belas é juíza cruel e fria ditadora e, em nome da modernidade e de novos tempos, destrói o que considera impróprio. De minha janela, vejo os prédios se multiplicarem, ervas-daninhas gigantes de uma selva de pedra. Meu quarto foi condenado simplesmente porque é velho como eu. Minha vida já não importa. Já fui notificado, já aceitei os termos do contrato.

A ambulância chegará em poucos minutos para me levar para um asilo. Qual é a necessidade de me levarem? Quero ficar aqui… Batem cada vez mais forte na porta. A janela. O cinza dos prédios e seus sorrisos sarcásticos de vencedores encobrem o azul do céu. Como uma enorme onda que se projeta sobre um castelo de areia.

25/04/2007

Quebra de rotina

Fazia mais de dois meses que não chovia na minha cidade e parecia que aquele dia seria tão seco quanto os outros. Céu de brigadeiro. Cortina de renda branca feita de pó. Eu tinha a certeza de estar dentro de algum filme antigo, com suas cores surreais. O escritório latejava nos meus ouvidos como um rufar de tambores de execuções em praça pública. Precisava sair dali. O Sol, que entrava brilhando listrado pelas persianas, velava meus devaneios, mas eu sabia que aquilo não iria durar muito tempo.

Atendi ao telefone ao primeiro toque, mecanicamente. Era do médico, que tinha novidades para mim, mas não queria dizê-las por telefone. Ordenaram que eu fosse ao consultório o mais rápido possível. “Agora?”, eu disse. “Sim, agora”, a secretária respondeu. Desliguei o telefone e saí sem dizer nada. Meu gordo chefe, o senhor Almeida, entenderia a minha situação, pois ele também tinha tanto medo de médicos quanto eu e fizera, como um igual a todos nós, esses mesmos exames. Exigências da empresa.

Entrando na sala de espera do consultório, eu senti o forte cheiro de desinfetante que toda sala de espera tem. Um cheiro de ânsia e aflição, de nervosismo. A sala estava vazia e não se ouvia um único suspiro. O chão de pedra fria lembrava-me do chão da casa de minha mãe, limpa e morta. Eu sabia que havia algo de errado naquela sala, em eu estar ali. Enquanto isso, aquela sala continuava vazia, cheirando a medo. Ela continuava eterna, esperando o passar do tempo chegar.

Sentei-me no sofá com pés de pedra e procurei algo para me distrair. Encontrei um livro no meio de tantas revistas de arquitetura e oncologia. Nada na capa, apenas pó. Antes de ler as páginas amareladas, fui beber água e só então vi que a sala tinha uma janela que dava para a rua. Eu não errara: aquele dia estava tão seco quanto os outros. A cortina de renda estava lá, além da porta.

Voltei para o sofá e comecei a ler. História engraçada aquela, a princípio. Familiar. Falava de uma mulher e seu filho, de um pai que caía no mundo. Contava sobre rebeldia, a surra, a fuga, a raiva e a culpa. A mãe, como minha mãe, morria sem saber de nada, sem saber dos sofrimentos do garoto depois. O filho começou aquele esquema de trabalho-escola noturna, depois de ter trabalhado o dia inteiro. Acabavam seus estudos e sua rebeldia, se formava. Como eu. Tudo como eu. Vivia sozinho. Eu. Chorava de medo. Eu. O livro prendia-me.

Esqueci-me do médico, do chefe, do escritório. Era como seu um livro pudesse saber de tudo. Cada medo, ele contava cada medo meu. Os anos passavam para o filho como passaram para mim, sozinho, medo de sentir. Cada página um momento, e o livro nunca acabava. O filho foi para um médico, encontrou um livro e o leu, desesperado, pois o livro contava a história de um homem como ele. Virava as páginas rapidamente, e o livro não acabava. A cada página o filho tinha lido sobre o homem virando mais uma página, mais uma página… Joguei o livro no chão sem me preocupar se alguém ouviria. Suando, senti sede, precisava de água. Enchi outro copo e bebi-o perto da janela.

Na janela da sala vi uma nuvem, a chuva. Tinha começado a chover. Errei. Tremia segurando o copo, o livro no chão. Uma campainha tocou na sala e deixei o copo cair. Era a secretária que chegava e que me encontrou limpando a água do chão, segurando, ineficiente, as manifestações do choro. Perguntou mecanicamente meu nome e minha empresa, eu respondi. De maneira quase óbvia, repetiu a pergunta, mexendo nos seus papéis, com cara de engano. “O senhor não é o senhor Almeida?” disse. Respondi que não, atônito e, quem sabe, aliviado. “Me desculpe, senhor, houve um erro em nosso cadastro…”. Não a deixei terminar: “O senhor Almeida é o meu chefe”. Depois de alguma conversa, já mais calmo, saí daquela sala. Fugi.

O livro continuava no chão, com suas páginas olhando para a porta por onde saí, tinha certeza, sua capa de pó derretida na pedra fria do chão. Fora do consultório, eu o via pela janela. A chuva lambia meu rosto. O pó escorria do meu medo. A cortina sumira. A sombra da secretária guardava o livro entre as revistas. Chovia e para mim não importava a página seguinte. Respirei fundo o ar úmido da chuva e não pude deixar de pensar: “Pobre senhor Almeida!”.

23/04/2007

O incêndio de sábado

O incêndio começou
A fumaça sobe
Carregando tudo
O tempo que não passou
A fumaça engole
As voltas do mundo
E mais quem não escapou
As pessoas fogem,
Correm, perdem tudo
Recolhem o que restou

Do que era suas vidas
Esperanças tortas
Lavando as ruas
Noites sempre mal dormidas
Sombras quase mortas
De máquinas sujas
Lambem chamas quase vivas
Frustrações dão voltas
Nos gritos das lutas
Nessas revoltas sofridas

Hoje crepitam as chamas
A lenha do medo
Vitória do forte
Queimam os velhos romances
Heróis ao relento
Temem sua sorte
A guerra não tão distante
Prepara seu vento
De fogo, de morte
Nas mentiras dos palanques

- Fora! Fora!
- Pare! Parem!
- Tá na hora…
- Se preparem…
- Gotas d’água fazem chuva…
- Doze armas, ditadura…
- Seu banquete acabou
a TV se apagou
nosso tempo voltou
e nunca vai passar
- Segue a normalidade
o bem da sociedade
vão, tropas da verdade,
para o povo acalmar!

É mais um domingo
Pé de cachimbo
Cachimbo é de barro
Cai no buraco
Não caia comigo
Lutas seguem, amigo,
E o buraco é fundo…
Acabou-se o mundo!

A correria imita
Um sonho novo
E, à luz do fogo,
O incêndio começa.

22/04/2007

Resumo egoísta de um fim de semana

Alguém me diga a verdade: será que sou ingrato? Tenho vontade de me tornar lenha e arder, queimar e aquecer sem a menor pena. Ser livre para sofrer como qualquer rato agonizando num bueiro da cidade. Sei que meu rosto é feio e que meu corpo não é nada melhor. Caráter importa para alguma coisa que preste? Ou qualquer sorriso descolado e irônico serve? Ainda não decidi o quê me torna pior: se são minhas culpas ou querer tentar ser perfeito. Minha pele descama em cicatrizes e sei sentir dor sem gemer: tenho orgulho de não dar aos outros essa satisfação. Sou ridículo e patético em meus esforços vãos para, sendo invisível, me proteger. Um erro em meio a uma ciranda de repetições felizes. Cadê o tal do futuro? Só sei viver minhas personagens no presente, pois mesmo as do meu passado só existem agora. Escrevo para transformar raiva em memória, mas só consigo traços de traumas em minha mente. Permaneço sem mãos, sangrando, socando os tijolos de um muro na minha Berlim.

21/04/2007

Ser estando

Minhas terças-feiras parecem
que estão virando domingos
Canções velhas que se repetem
com letras novas mas sem sentido
Minha alegria é saber que,
apesar de tudo, estou aqui
Sou um mosaico de azulejos
de cemitério colados com argamassa barata
e estou feliz em ser isso mesmo:
Nada mudaria pela argamassa ser cara
E continuo sendo um e vários ao mesmo tempo
Uma mente caminhante feita de idéias
e com rinite alérgica
Em constante mudança inerte e mentirosa
Sorrio, sou feliz e sofro
Finjo exercitar minha dialética
Tentando mostrar que sou algo novo
Misturando clichês, domingos e azulejos
Em palavras alérgicas ao pó de que são feitas.

20/04/2007

Despedida

Quando quiser que eu vá embora
Deixa minha lucidez mentir
E me leva arrastado daqui
Cuspindo naqueles que amei
Quero ter o gosto da ironia
Na boca uma última vez

Do fim até o começo, tanto faz
O que sempre esteve errado continua
E o engraçado depende de quem julga
Estúpidos e sábios, causas e defeitos
O vermelho nos meus olhos de agonia
Tem, para os outros, sabor de refresco

É tão bom ignorar o absurdo
E ser apenas mais um atestado de óbito
A preguiça medrosa de encarar o óbvio
Faz qualquer um sorrir feito uma criança
Sou soldado na revolta a favor da alegria
De sonhar, só por sonhar, em ter esperança

Quando quiser ir embora
Não me avisa e puxa a coberta
Vou com você e deixo a porta aberta
Choro baixo duas lágrimas pelos meus
Não quero acordar ninguém…
E que me aguardem os seus!

19/04/2007

Lua

Ah, Lua desgraçada!
Mais cheia que o bolso do rico,
Ilumina a secura do mundo
E deixa o céu num profundo
azul-hematoma

Ah, Lua suja
de cinza na brancura do amarelo!
Acende o asfalto da rua,
Quebra sutil as grades da janela,
vem e desenha um raio de prata!

Ah, Lua suja, escura, que me maltrata!
Vai!
Finge que não sabe
que você brilha com o dobro da força
quando quem ama sente saudade!

Ah, maldita Lua!
Quem dera ser São Jorge
pra esquecer que na Terra
o dragão continua,
como sempre,
forte…

Ah, Lua!
Queijo velho, sujo e cheio…
Colesterol!
(Putz!)

Bem…
Até quando você vai fingir que é pura poesia
pra esquecer que é um arremedo de Sol?

Ah, minha branca menina feia,
“Quem ama o feio, bonito lhe parece”…
Quem te viu no céu realmente cheia
Nunca mais te esquece!

16/04/2007

Slow-motion

Sempre começa devagar o processo. Um sorriso percorre minha mente assim que ouço o primeiro clique do gatilho, um pequeno deslizar metálico cria um suave som de talheres de prata raspando. Assim que o sorriso acaba seu percurso, lembro de prestar atenção novamente nos sons da arma que engulo. Com um soco, a bala recebe a pancada. Toda força gera uma reação igual e contrária. Pólvora é um bicho sensível: não gosta de apanhar. O jeito é gritar e fugir. O cano com suas ranhuras faz a bala girar, rodopiar como uma dançarina, enquanto corre, voa. Meus olhos se abrem quando sinto o primeiro contato. A bala está quente e queima o furo que ela mesma abre, rasga. Cada milímetro dói mais, até que tudo fica frio, quase refrescante. A bala parece até que deixou um rastro de ar fresco, mas o cheiro do disparo nega essa sensação. Não tive tempo de sentir sangue escorrer, acho. Com o que me engasgo então? Escuridão. Não tive tempo, acho. Acho que não.

14/04/2007

Saudosismo

Ontem tudo era tão bom
Ontem tudo era tão bom
Bem melhor do que hoje pode ser
Não vou viver
Não vou viver
Vou esperar
Vou esperar amanhã
Pra ver se vale a pena
Deixar de esperar
Amanhã pra ver
E ter saudade

Sorrir e disfarçar o tempo
Sorrir e disfarçar o tempo
Não lembrar é pior que esquecer
Não vou viver
Não vou viver
Vou aguentar
Vou aguentar amanhã
Pra ver se vale a pena
Tentar acordar
Amanhã e esquecer
de ter saudade

10/04/2007

Trem

O quê o homem de azul não sabia naquele momento era que aquele seria o último trem que saía de sua estação no meio do deserto. Não que saber disso naquele momento fosse fazer alguma grande diferença a longo prazo, mas talvez fosse uma nota interessante a ser feita. Se tivesse também as estatísticas de tal data em mãos, com certeza as registraria aqui, mas, paciência, não se pode ter tudo. O homem de azul não demorou a ficar muito para trás e virar somente um ponto ao longe. O trem corria rápido, apitando, bufando, sufocando. Uma imensa distância a correr em frente, um ponto escuro com uma partícula azul nele para trás.

Assim corria o trem, completamente vazio, sem maquinista, passageiro ou clandestino, sem nada. Rapidamente devorava os trilhos que pisava. Tamanha era a sua fome que realmente engolia os longos trilhos de ferro com seus dormentes de madeira. O trem vazio não deixava rastros além de sua fumaça branca, que não durava muito no ar. Quem passasse por aquelas bandas desertas, apenas cinco minutos depois que fosse, não teria a menor idéia de que ali passara um trem tão poderoso como aquele. Talvez nem o homem de azul na estação tivesse alguma noção do poder daquele trem.

Ele nunca atrasava - que fique claro que aqui a ambigüidade do pronome é proposital. Imagine o tímido espanto do homem de azul ao perceber que agora não adiantava de nada sua pontualidade. Afinal, assim que o trem saiu da estação com sua velocidade faminta ele soube que aquele era o último trem que saía de sua estação. “Aquela máquina é formidável”, pensou o homem de azul, olhando para sua patética estação sem trilhos e sem gente nenhuma, no meio do deserto. Não conseguiu evitar um suspiro seco. Sentiu um vento morno chegando e tocando seu rosto.

Na verdade, era sempre assim depois do trem, mas o homem nunca teria como saber isso de antemão. Começava a soprar um ar gasto sobre onde antes estavam os trilhos; parecia carregar algo de novo e de destrutivo também. O horizonte na direção de onde ficava o caminho dos trilhos estava vazio – era apenas chão novamente, sem qualquer significado distintivo, como devia ter sido a muito tempo, antes da estrada de ferro. O homem sentiu sede por culpa do vento, mas sentia-se cansado demais para ir até o tanque de água e sacia-la.

O vento tornava-se mais forte e um estrondo crescente parecia que vinha rolando, crescendo, aumentando, tomando a forma de uma onda, se aproximando. Vinha de onde o trem tinha vindo, seguia o caminho dos trilhos engolidos e era como se perseguisse o trem, pensou o homem de azul. O grande estrondo ainda não tinha chegado até a plataforma da estação, onde estava o homem, sozinho. Começaram a estalar as tábuas do telhado da estação, alguns restos de plantas secas foram arrancados e voavam fazendo cirandas, logo desaparecendo de vista. O homem de azul sentia o som daquele vento arrancando suas roupas azuis aos poucos, rasgando-as como se fossem uma bandeira que ficou tempo demais hasteada.

O homem de azul acabou ficando nu logo; era apenas um homem, não mais um homem de azul. O estrondo passava ensurdecedor e rápido, na velocidade do trem. Seguiu seu caminho e desapareceu ao longe. A estação permaneceu, semi-destruída. Na verdade, tão destruída que não se podia chamá-la de estação mais.

O homem olhava ao seu redor, para o horizonte, para o céu, para um lado onde estavam trilhos, para o outro lado. Sempre devagar, entre calmo e um pouco chocado, talvez os dois. Começou a prestar atenção nas vezes em que piscava os olhos. Uma, duas, três a cada grande olhar. Percebeu que da direção de onde tinham vindo o trem e o vento vinha uma escuridão densa. E, de olhos fechados, não se sentiu espantado, nem sequer timidamente.

Café com leite e pão

Vou caminhar sozinho,
Lembrando de quando estava acompanhado.
Projeto meus sonhos sorrindo,
Mas cuidando de continuar calado
Porque falar não vale a pena
Quando não se tem certeza
Se falar é boa idéia ou não.
E, como qualquer outro, não quero ter o esforço
de recolher cacos da minha cara espalhados pelo chão
Sim, sou medroso.
Sim, eu sou um cão.
Confesso que nasci para isso
E, apesar de não gostar disso,
Sou uma média e um pingado,
Café com leite e pão.

09/04/2007

Primeiro de fevereiro

E, de repente e quebrando a estática, o estojo da máquina fotográfica disse para a toalha que servia de apoio para minha caixa-visão:

- Quem dera essa noite não fosse tão fria e azul, não é, Rita?

- Claro que sim! - respondeu a toalha - Cansa ficar em silêncio no escuro. Sinto medo.

A essas alturas já não interessava o que diziam, mas faziam companhia uma para a outra. O ar estava com gosto de sal, úmido. Estava com saudades enquanto escrevia e ouvia. Ouvia uns pedaços desconexos de canções em castelhano, o que criava uma sensação de deslocamento ainda maior para os flamingos azuis claros que cruzavam a janela, silhuetados pela luz laranja dos postes. Deslocamento em slow-motion através de um sonho.

- De que adianta passar as noites iluminando a compreensão de mais esse anônimo que senta à minha frente? De que adianta? Eu te pergunto, amiga. Ele não percebe, não sente… - disse a visão, antes calada, sobre a toalha.

- Deixa ele ser, let it be… Quem sabe o que pode acontecer nesse tempo que ele passa sentado aí? - disse Rita, cansada do peso da amiga sobre ela.

É tão estranho perceber que encaixotei minha visão dentro de uma caixa luminosa de plástico e componentes eletrônicos. Essa caixa é minha visão e a extensão de meu tato até… Através dela eu imaginava, naqueles momentos, o quê minha amada sentia, lá longe. Como estaria o seu rosto? Estava ela chorando? Só a caixa me respondia pistas incompletas, que deixavam a platéia de sombras, apoiadas feito papagaios em meus ombros, ainda mais insatisfeita e curiosa.

- O estojo dormiu? - disse minha visão.

- Sim, creio… Mas esqueça dele, ele não muda nada. - respondeu Rita.

- Por quê, Rita? Não era ele que queria uma noite mais clara, diferente? Assim como você? Cadê a compaixão por aqueles que sentem o mesmo medo?

- Ele não entende o medo que sinto. Apenas repetia um eco de comentário desse anônimo que agora aluga o seu funcionamento, minha amiga. Apenas isso.

- Ah! Mas disso eu não sabia! - mostrou-se surpresa, ainda que por uma fração de segundo, minha visão, e depois olhou para mim - Se bem que… É bastante óbvio, na verdade. Para alguém que apenas aguarda a hora de ser refúgio e proteção, incompleto e dependente, repetir um eco é a ordem natural… Toda caverna ecoa, não é? Tudo o que é vazio, porém profundo o suficiente…

Nesse momento, os flamingos começaram a ir embora, sair de cena, com caras inchadas de sono, feito a minha. Minha onipotência falha, minha onisciência parcial e minha presunção estúpida faziam uma ovação em ola nas arquibancadas vazias e sujas de minha cabeça. Por que eu insistia tanto em saber, se nada podia fazer? Custava tanto ignorar, desligar minha visão e alegremente me jogar no escuro torpor do seguir em frente. Era difícil entender a liberdade de guardar uma dor, de se desesperar sozinho por querer. O gato egoísta que dormia no sofá ao meu lado sabia de quê eu falava e discordava profundamente de minha opinião, como ele já tinha, com muita fleuma, exposto para mim durante o jantar. Astuto orador, ele! Quem dera eu também tivesse bigodes e botas de qualidade!

- Quero dormir e descansar dessa ansiedade toda que despejo… - disse minha visão.

- Vá dormir, então! Não perde nada dormindo… O anônimo seguirá escrevendo e lendo mais algum tempo, não se preocupe. - respondeu secamente Rita.

- Sim, claro! Mas seria gratificante vê-lo sorrir, ou mudar… É sempre algo bom ver um remador solitário vencer uns dois pares de ondas do mar aberto.

- Nunca um remador está solitário, amiga. Sempre terá o mar, sua deriva e a espera pela terra que o apóia e mantém vivo. Não pode existir mar aberto sem ilhas, amiga… Deixe-o de olhos fechados e à deriva, e vá dormir.

- Boa noite, Rita… Desculpe pelo peso de sempre.

- Tudo bem, amiga… De alguma maneira, ainda que muito fraca, essa sua luz elétrica serve para aliviar um pouco esse medo que sinto às vezes - disse a toalha quase sussurrando, enquanto a visão, já adormecida, não poderia mais ouvi-la.

Estou ilhado novamente, esperando meus olhos não abrirem por exaustão, fadiga. Os flamingos azuis já estão longe, navegando sobre ondas ainda mais claras que eles, e a luz que os enegrecia e contornava misturou-se ao brilho baço do amanhecer. A ilha estava feita um gato egoísta enrolada em cobertas distantes, dormindo ainda irritada com seu pensamento do remador anônimo, mas compreensiva. A ansiedade cuspiu no ar um cheiro novo de sono tardio, velho conhecido. Que calor unia esses pensamentos? A caixa da visão estava escura, desnecessária por algum tempo, enquanto ecos me levavam de volta para onde sentia a memória doce de todos os dias ao lado da minha amada. O estojo da máquina fotográfica ecoava um grito seu de um instante perdido de amor, e assim desejava ao dia que nascia uma boa noite.

01/04/2007

Porão

Agora, aqui entre nós,
Uma unha a menos,
Um gemido, não diz nada…
Só faz perguntar onde dói o silêncio,
Se é na minha ou na sua cara…
Quantos cortes sangram
Lágrimas dos meus olhos?
Acho que não sei o seu nome, amigo,
Se bem que vocês são todos iguais, não é?
Atrás dessa sua obediência cega
Se deita o dragão da estupidez
Que o faz esquecer as boas maneiras
Da sua nobre vida paralela…

Calma, não tenho sede,
Para que todo esse barril de bebida?
Pegue um copo lá em cima e tome um gole comigo
E largue meus cabelos molhados, amigo…
Suas mãos são fortes demais para um cumprimento,
Mas cumprem o que acham que devem com vigor…
Você deve ser alguém muito sério lá fora…
Se um dia nos encontrarmos, prometo que não guardo rancor…
Já disse, meu nome está no meu cartão de visitas
Você pode encontrar meus outros amigos na lista
Não lembro o endereço de ninguém
E nunca pratiquei qualquer atividade ilícita…
Sei que nunca fingi ou menti também… E você?

O chão não está mais frio
E meus músculos não me obedecem mais
O ar está fugindo de mim, arisco…
Antes do choque me deixe dar um suspiro
E serei para sempre grato a você, amigo…
Meu punho está fechado como sempre
Meu braço esticado lembra um gesto antigo
Será que é impressão minha esse cheiro,
O medo que sente o injusto, ou é só o futuro que chega?
Queria ser capaz de ver seu rosto,
Mas as brasas nos olhos não ajudam muito…
Quem sabe num segundo tempo a gente não se veja?

Enquanto isso, me deixe descansar…
Só um pouco…